QUESTÃO DE CONCURSO: FGV | ENAM (2024.2) | 2º EXAME NACIONAL DAMAGISTRATURA (DIREITO PENAL)

Em 15 de junho de 2024, Técio buscou atendimento em hospital de sua cidade devido a uma indisposição gástrica, preencheu a ficha com seus dados, consignando no campo próprio que possuía alergia a dipirona, e foi, em seguida, encaminhado ao consultório onde estava de plantão o médico Caio.

Ao iniciar o atendimento, o paciente Técio relatou os sintomas de desconforto abdominal e náusea. O médico Caio, após exame clínico, acabou se esquecendo, negligentemente, de ler na ficha de atendimento do paciente o campo de suas declaradas alergias medicamentosas e o encaminhou para a enfermaria, com prescrição de aplicação de uma ampola de Buscopam (composto de butilbrometo de escopolamina e de dipirona sódica monoidratada).

Chegando ao setor próprio para receber o prescrito medicamento, Técio foi recebido pelo enfermeiro Guilherme que, de pronto, não só o reconheceu como um vizinho por ele malquisto, como também constatou a notória inobservância do cuidado objetivo do médico Caio, já que, em sua prescrição de medicamento, havia um dos potenciais alérgenos declarados pelo paciente em sua ficha (dipirona).

Certo é que, mesmo percebendo o irresponsável equívoco do médico, Guilherme, desejando fortemente a morte do paciente Técio, aplicou-lhe o medicamento, gerando rápidas consequências em seu organismo, com grave choque anafilático e parada cardíaca que, por muito pouco, não custaram a vida do paciente. Técio só foi salvo por força de rápida e eficaz ação de outra equipe de plantonistas que se encontrava no nosocômio, vindo a vítima a sobreviver.

Considerando que todos os fatos foram devidamente comprovados, inclusive os aspectos subjetivo-normativos dos comportamentos dos envolvidos (atuação culposa de Caio e dolosa de Guilherme), e que o remédio prescrito seria o teoricamente adequado em qualidade e quantidade ao quadro de saúde de Técio, não fosse sua declarada alergia a uma das substâncias, assinale a afirmativa correta.

(A) Caio e Guilherme responderão por crime de homicídio doloso na modalidade tentada, não havendo que se falar em concurso de pessoas.

(B) Caio e Guilherme responderão por crime de lesão corporal dolosa grave pelo perigo de vida, em concurso de pessoas.

(C) Caio responderá por crime de lesão corporal dolosa grave pelo perigo de vida, enquanto Guilherme estará sujeito às penas do homicídio doloso, na modalidade tentada, não havendo que se falar em concurso de agentes.

(D) Caio responderá por crime de lesão corporal culposa grave, qualificada pelo perigo de vida, e Guilherme por crime de homicídio doloso, na modalidade tentada, não havendo que se falar em concurso de agentes.

(E) Caio responderá por crime de lesão corporal culposa, e, Guilherme, por crime de homicídio doloso na modalidade tentada, não havendo que se falar em concurso de agentes.

Vamos desmembrar este caso complexo de Direito Penal.

Análise do Caso Concreto

O caso envolve a atuação de dois agentes (Caio, o médico, e Guilherme, o enfermeiro) e a ocorrência de um resultado gravíssimo (choque anafilático e parada cardíaca), que quase levou a vítima (Técio) à morte.

1. A Conduta do Médico Caio

  • Dever de Cuidado: Caio, como médico, tinha o dever legal de verificar o prontuário do paciente (que continha as “declaradas alergias medicamentosas”).
  • Ato Praticado: Negligenciou o prontuário, prescrevendo Buscopan (composto de butilbrometo de escopolamina e de dipirona sódica monoidratada) e encaminhando para a enfermaria.
  • Resultado: A dipirona, à qual Técio era alérgico (segundo a questão), causou o choque anafilático e a parada cardíaca, colocando-o em grave choque anafilático e parada cardíaca, o que configurou perigo de vida concreto.
  • Elemento Subjetivo: Caio agiu com culpa na modalidade negligência, pois tinha o dever de prever e evitar o resultado lendo o prontuário. Ele não quis nem assumiu o risco de produzir a morte ou lesão grave.

Classificação do Crime de Caio:

A conduta de Caio, por inobservância do dever de cuidado (negligência) na área médica, resultou em lesão corporal com perigo de vida. No entanto, o Código Penal prevê:

  • Lesão Corporal Culposa: Art. 129, § 6º.
  • A gravidade do resultado (perigo de vida) é considerada na dosimetria da pena, pois o tipo culposo não é dividido em leve, grave ou gravíssima, mas as consequências podem ser valoradas (conforme o Art. 59 do CP – consequências do crime).
  • A qualificadora do perigo de vida (Art. 129, § 1º, II) é tipicamente do dolo. O resultado de “perigo de vida” decorrente de culpa é absorvido pelo $\S 6^\circ$ ou considerado na dosimetria, não havendo a figura autônoma de “lesão corporal culposa grave pelo perigo de vida” no sentido formal, mas o resultado foi de natureza grave.

No contexto das alternativas e da gravidade do caso, a tipificação mais adequada para Caio, dada a sua negligência e o resultado de perigo de vida, é a de Lesão Corporal Culposa (Art. 129, § 6º do CP), com a ressalva de que o resultado foi de natureza grave.

2. A Conduta do Enfermeiro Guilherme

  • Dever de Cuidado: Guilherme, ao reconhecer Técio como vizinho e constatar a “notória inobservância do cuidado objetivo do médico Caio” (pois o prontuário indicava a alergia), tinha o dever de abstenção.
  • Ato Praticado: Ele aplicou o medicamento, mesmo “percebendo o irresponsável equívoco do médico”.
  • Elemento Subjetivo: Ele não desejava a morte (dolo direto), mas, ao perceber o risco gravíssimo (“potenciais alérgenos”, “notória inobservância do cuidado”) e, mesmo assim, optou por aplicar o medicamento, ele assumiu o risco de produzir o resultado morte (choque anafilático e parada cardíaca). Essa é a definição de dolo eventual.
  • Resultado: O resultado morte não se consumou (Técio foi salvo pela equipe de plantonistas), mas o enfermeiro iniciou a execução do crime de homicídio (aplicação do veneno/alérgeno) e o resultado morte não ocorreu por circunstâncias alheias à sua vontade (a intervenção da equipe de plantonistas).

Classificação do Crime de Guilherme:

  • Dolo Eventual de Homicídio: O agente (Guilherme) aceitou o risco de matar ao aplicar a substância que sabia ser potencialmente letal para Técio.
  • Crime Tentado: A morte não se consumou por intervenção de terceiros.
  • Tipo Penal: Homicídio Doloso na modalidade Tentada (Art. 121, caput, c/c Art. 14, II do CP).

3. Concurso de Agentes

Não há que se falar em concurso de agentes para o mesmo crime, pois Caio agiu com culpa (negligência) e Guilherme agiu com dolo eventual (assumindo o risco). Há, na verdade, uma situação de concurso de crimes (ou, mais precisamente, um caso de autoria colateral ou crimes autônomos), onde cada um responde por seu próprio crime.

Conclusão e Análise das Alternativas

A única alternativa que contempla a correta tipificação subjetiva e objetiva das condutas de ambos os agentes, conforme a doutrina e a jurisprudência, é a que imputa a Caio o crime culposo (em que o perigo de vida é a qualificadora ou a natureza da lesão culposa) e a Guilherme o crime doloso tentado (homicídio tentado).

  • (A) Caio e Guilherme responderão por crime de homicídio doloso na modalidade tentada, não havendo que se falar em concurso de pessoas. (Incorreta. Caio agiu com culpa, não dolo).
  • (B) Caio e Guilherme responderão por crime de lesão corporal dolosa grave pelo perigo de vida, em concurso de pessoas. (Incorreta. Caio agiu com culpa. Guilherme agiu com dolo de homicídio).
  • (C) Caio responderá por crime de lesão corporal dolosa grave pelo perigo de vida, enquanto Guilherme estará sujeito às penas do homicídio doloso, na modalidade tentada, não havendo que se falar em concurso de agentes. (1Incorreta. Caio agiu com culpa, não dolo. A pena de Guilherme seria a do homicídio tentado).
  • (D) Caio responderá por crime de lesão corporal culposa grave, qualificado pelo perigo de vida, e Guilherme por crime de homicídio doloso, na modalidade tentada, não havendo que se falar em concurso de agentes. (Incorreta. A lesão corporal culposa grave não é “qualificada pelo perigo de vida” de maneira formal no CP. A lesão culposa é a do $\S 6^\circ$, sendo o resultado de perigo de vida considerado para a pena, mas a redação “qualificado pelo perigo de vida” é imprecisa para o crime culposo. Além disso, a melhor opção é a E).
  • (E) Caio responderá por crime de lesão corporal culposa e, Guilherme, por crime de homicídio doloso na modalidade tentada, não havendo que se falar em concurso de agentes. (Correta. Esta é a mais precisa: Caio por lesão culposa (Art. 129, § 6º) – a lesão grave é a natureza do resultado; Guilherme por homicídio doloso tentado. A exclusão do concurso de agentes está correta, pois Caio agiu com culpa e Guilherme com dolo).

A alternativa (E) é a que melhor e mais corretamente sintetiza a responsabilidade penal autônoma de cada agente, segundo os elementos subjetivos verificados no texto (culpa para Caio e dolo eventual para Guilherme).

Portanto, a resposta correta é a (E).

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