Processo nº: 5564679-88.2021.8.09.0005
Parte autora:
Parte ré: BANCO BMG S.A.
SENTENÇA
Trata-se de ação declaratória de nulidade de contrato com reserva de margem consignável cumulada com declaratória de inexistência de débitos, restituição de valores e indenização por dano material e moral ajuizada por em face de BANCO BMG S.A., partes devidamente qualificadas.
Narrou a autora, em síntese, que é aposentada e há mais de quatro anos vem sofrendo descontos em seu benefício. Afirmou que, conforme histórico de empréstimos consignados, consta o contrato de cartão de crédito nº 12128434, na modalidade reserva de margem consignável (RMC), cujo desconto mensal perfaz o montante de R$ 55,00.
Defendeu que não houve contratação e que a modalidade de cartão de crédito é abusiva. Em sede de tutela de urgência, requereu a suspensão dos descontos.
Ao final, pugnou pela declaração de nulidade do contrato, com restituição em dobro dos valores cobrados e condenação por danos morais. Subsidiariamente, requereu a revisão e conversão do termo de adesão do cartão de crédito para a modalidade empréstimo consignado tradicional.
Juntou documentos e requereu gratuidade de justiça (evento nº 01).
Concessão da tutela de urgência e justiça gratuita (evento nº 04).
Citado, o réu apresentou contestação, aduzindo, preliminarmente, impugnação ao valor da causa. Alegou, ainda, prescrição da pretensão e decadência do direito.
No mérito, defendeu que houve contratação, com ciência prévia por parte da autora e realização de saques complementares. Ainda, rechaçou os demais argumentos lançados na inicial e pugnou pela improcedência dos pedidos (evento nº 16).
Audiência de conciliação realizada sem acordo (evento nº 18).
Decisão que deferiu o pedido de prova pericial grafotécnica (evento nº 28).
Juntada do laudo pericial (evento nº 63).
Manifestação do réu (evento nº 66).
Vieram os autos conclusos.
É o relatório. Decido.
O feito transcorreu normalmente, não havendo nulidades a serem sanadas.
Inicialmente, homologo o laudo pericial produzido pela expert e acostado ao evento nº 63. Determino a expedição de alvará em favor da Sra. Perita para transferência do restante dos honorários periciais à conta indicada na petição de evento nº 67.
Em relação à preliminar de impugnação ao valor da causa suscitada na contestação, nos casos em que há cumulação de pedidos, o valor da causa deve representar a soma da integralidade dos requerimentos, conforme ensina o art. 292, VI, do CPC.
Nesses termos, considerando os pedidos veiculados pela autora, correspondentes à restituição em dobro dos valores descontados e condenação por danos morais, tenho que não há incorreção no montante indicado.
Sendo assim, rejeito a preliminar suscitada.
Com relação à prejudicial de mérito da prescrição, é consolidado o entendimento na jurisprudência no sentido de que a prescrição para declaração da inexistência de débito e restituição de valores descontados é quinquenal.
Ainda, o termo inicial flui a partir do último desconto do benefício. Vejamos:
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE DÉBITO CUMULADA COM REPETIÇÃO DE INDÉBITO E DANOS MORAIS. PRAZO PRESCRICIONAL QUINQUENAL. ART. 27 DO CDC. PRECEDENTES. TERMO INICIAL DA PRESCRIÇÃO. DATA DO ÚLTIMO DESCONTO. ACÓRDÃO EM HARMONIA COM A JURISPRUDÊNCIA DESTA CORTE. SÚMULA N. 83/STJ. AGRAVO INTERNO IMPROVIDO.
1. A jurisprudência sedimentada nesta Corte Superior é no sentido de que, fundando-se o pedido na ausência de contratação de empréstimo com instituição financeira, ou seja, em decorrência de defeito do serviço bancário, aplica-se o prazo quinquenal previsto no art. 27 do Código de Defesa do Consumidor.
2. Em relação ao termo inicial, insta esclarecer que a jurisprudência desta Casa é firme no sentido de que o prazo prescricional para o exercício da referida pretensão flui a partir da data do último desconto no benefício previdenciário.
3. Agravo interno improvido. (AgInt no AREsp n. 1.728.230/MS, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 8/3/2021, DJe de 15/3/2021.)
No caso em análise, o último desconto se deu em outubro de 2021, imediatamente antes da concessão da tutela de urgência que determinou a suspensão da cobrança. Assim, não há falar em prescrição da pretensão, razão pela qual rejeito a prejudicial de mérito.
Sob o mesmo fundamento, a prejudicial de mérito da decadência não merece prosperar. Por se tratar de relação de trato sucessivo, o termo inicial se renova mês a mês, a cada desconto.
Não é outra a jurisprudência do eg. TJGO:
APELAÇÃO CÍVEL EM AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL C/C TUTELA DE URGÊNCIA. PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA. INOCORRÊNCIA. CONTRATO DE CARTÃO DE CRÉDITO CONSIGNADO. UTILIZAÇÃO PARA SAQUE COMPLEMENTAR. SÚM. 63 DO TJGO. DISTINGUISHING. SENTENÇA REFORMADA. I – Afasta-se a prejudicial de mérito de prescrição, porquanto, no caso dos autos, a pretensão autoral não se sujeita ao prazo prescricional trienal, mas, sim, ao prazo decenal, nos termos do art. 205 do Código Civil; II – Rejeita-se, também, a prejudicial de mérito de decadência, pois, tratando-se de relação contratual de trato sucessivo, o prazo para propor ação renova-se simultaneamente com a obrigação, razão pela qual a regra do art. 178 do Código Civil afigura-se inaplicável ao caso; III – A hipótese vertente retrata a situação em que se deve aplicar o distinguishing da Súm. 63 do TJGO, para reconhecer a validade da avença, porquanto evidenciada a ciência do contratante acerca da modalidade contratada (cartão de crédito consignado), uma vez que, além do saque inicial, o consumidor fez o uso efetivo do produto contratado para efetivação de saque complementar, conforme o histórico de faturas juntado. SENTENÇA REFORMADA. APELO CONHECIDO E, NO MÉRITO, PROVIDO. (TJGO. Apelação Cível nº 5358362-84.2023.8.09.0006. Relator Des. José Carlos Duarte. DJe em 19/08/2024).
Pelo exposto, rejeito a prejudicial de mérito aduzida.
Não havendo outras questões preliminares ou prejudiciais a serem examinadas, estando presentes os requisitos de admissibilidade do processo, avanço ao mérito da ação.
De saída, registro que a relação jurídica entabulada entre as partes é de consumo, na medida em que a parte autora é destinatária final do serviço bancário comercializado pelo réu, amoldando-se, portanto, à definição veiculada pelo art. 2º do CDC.
Discute-se nos presentes autos acerca da natureza do negócio jurídico pactuado entre as partes. Em síntese, o autor alega que celebrou com a instituição financeira demandada contrato de empréstimo consignado, e não de cartão de crédito, mas que tem recebido cobranças como se esta fosse a modalidade do ajuste.
Por sua vez, a parte ré sustenta que o instrumento contratual estabeleceu de maneira clara e objetiva tratar-se de cartão de crédito consignado.
Desde logo, necessário diferenciar os dois negócios jurídicos.
Empréstimo consignado é a modalidade de mútuo feneratício por meio do qual o mutuário obtém imediatamente um montante em dinheiro e, em contrapartida, são realizados descontos mensais em sua remuneração.
No cartão de crédito consignado, por outro lado, o cliente recebe um cartão de crédito para realizar pagamentos e autoriza a instituição financeira a promover o desconto de apenas um valor mínimo da fatura, pré-fixado, cabendo a ele quitar o restante mediante boleto em separado ou optar por postergar o pagamento pelo rotativo.
O eg. Tribunal de Justiça do Estado de Goiás firmou posicionamento no sentido de que a modalidade de contrato denominada cartão de crédito consignado é abusiva por ofensa ao art. 51, IV, do CDC, na medida em que o desconto da parcela mínima, aliado ao refinanciamento mensal, tornam a dívida excessivamente onerosa para o consumidor.
O posicionamento foi consolidado por meio da Súmula nº 63, do TJGO, que, na esteira do que preceitua o art. 489, §1º, V, do CPC, é precedente de natureza vinculante, não podendo o magistrado de primeiro grau decidir de forma diversa. Eis a redação do referido enunciado sumular:
Súmula TJGO nº 63. Os empréstimos concedidos na modalidade ”Cartão de Crédito Consignado” são revestidos de abusividade, em ofensa ao CDC, por tornarem a dívida impagável em virtude do refinanciamento mensal, pelo desconto apenas da parcela mínima, devendo receber o tratamento de crédito pessoal consignado, com taxa de juros que represente a média do mercado de tais operações, ensejando o abatimento no valor devido, declaração de quitação do contrato ou a necessidade de devolução do excedente, de forma simples ou em dobro, podendo haver condenação em reparação por danos morais, conforme o caso concreto.
Assim, submetendo-me ao referido precedente vinculante, conclui-se que o contrato firmado entre as partes, embora existente, é abusivo.
Na demanda sob exame, considerando os documentos apresentados pelas partes, o uso do crédito fornecido pela instituição financeira se perfectibilizou mediante três saques bancários, não por realização de compras mediante apresentação do cartão de crédito.
Ademais, do laudo pericial produzido verifico que a autora é analfabeta, de modo que a contratação ocorreu por assinatura a rogo.
O laudo restou inconclusivo em relação a impressão digital, por ausência de identificação de pontos característicos em quantidade suficiente. No entanto, quanto a assinatura de Marlene Gomes dos Santos, que assinou a rogo, a perita concluiu que “os vestígios suportam moderadamente a hipótese de que os manuscritos questionados foram produzidos pela produtora dos padrões gráficos de Marlene Gomes dos Santos. Assim, tais convergências são moderadamente indicativas de autenticidade das firmas questionadas.”
Com fundamento nas conclusões apresentadas pela perita, constato que a autora acreditou estar celebrando com o banco réu um contrato de empréstimo consignado convencional, e não na modalidade de cartão de crédito.
Tal entendimento é corroborado pelo fato de a autora jamais ter utilizado o referido cartão para a realização de compras ou transações financeiras, conforme se depreende das faturas e saques apresentados pelo réu no evento nº 16.
Assim, não há distinção (distinguishing) a ser realizada em relação à Súmula nº 63 do TJGO, senão a correta subsunção dos fatos à jurisprudência:
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. CARTÃO DE CRÉDITO CONSIGNADO. UTILIZAÇÃO PARA SAQUES E COMPRAS. COMPROVADA. JUÍZO DE DISTINÇÃO DA SÚMULA 63 DESTE SODALÍCIO. SENTENÇA MANTIDA. 1. Mediante aplicação da técnica da distinção (distinguishing), afasta-se a aplicação da Súmula 63/TJGO ao caso no qual se constatar que o consumidor teve ciência da natureza do contrato e das características que lhe são essenciais, fato demonstrado pelo uso do cartão de crédito para realização de saque e inúmeras compras, inclusive, algumas parceladas. 2. Ausente cobrança indevida ou qualquer conduta lesiva a direitos da personalidade, não há falar em repetição do indébito ou em reparação por dano moral. 3. Em atenção ao previsto no art. 85, § 11, do Código de Processo Civil, deve ser majorados os honorários advocatícios arbitrados anteriormente para 13% (treze) por cento sobre o valor atualizado da causa, mantidas as ressalvas previstas no art. 98, § §2º e 3º, do mesmo diploma processual civil. APELAÇÃO CONHECIDO E DESPROVIDA. (TJGO, PROCESSO CÍVEL E DO TRABALHO -> Recursos -> Apelação Cível 5417812-26.2021.8.09.0006, 1ª Câmara Cível, julgado em 26/10/2023, DJe de 26/10/2023).
No que concerne ao pleito de restituição, é preciso apurar, após a readequação da modalidade do contrato e de seus consectários remuneratórios, se a parte autora possui valores a pagar ou a receber.
Havendo crédito a receber, a restituição deverá ser realizada de forma simples, não em dobro. Afinal, houve engano do próprio consumidor ao subscrever instrumento de contrato diverso daquele pretendido, motivo pelo qual não há, na espécie, incidência da dobra prevista no art. 42 do CDC.
Por outro lado, quanto ao pedido de indenização por danos morais, entendo que a presente situação, nada obstante tenha provocado dissabor ao consumidor, não foi suficiente para ofender direitos inerentes à sua personalidade e, consequentemente, caracterizar abalo moral indenizável.
Afinal, sequer houve comprovação de prévia tentativa de resolução do imbróglio no âmbito administrativo.
De mais a mais, houve a contratação de serviços bancários e, em contrapartida, a liberação de valores pelo réu, de forma que a necessidade de ajuste no contrato entabulado pelas partes não ocasionou danos morais à autora.
Por fim, pelas circunstâncias e elementos presentes no processo, entendo não haver elementos caracterizadores de alguma das hipóteses previstas no art. 80 do CPC, razão pela qual afasto a tese de litigância de má-fé deduzida pelo réu.
Ante o exposto, julgo PARCIALMENTE PROCEDENTES os pedidos formulados pela autora, nos termos do art. 487, I, do CPC, e:
a) DECLARO a abusividade do negócio jurídico celebrado entre as partes;
b) CONVERTO o contrato de cartão de crédito consignado para empréstimo consignado, com incidência da média apurada pelo Banco Central do Brasil (BACEN) no período como referência para a cobrança dos juros remuneratórios, devendo a margem dos descontos na remuneração ou provento de aposentadoria observar o limite estabelecido pelo art. 1º, §1º da Lei 10.820/03;
c) CONDENO o réu à restituição simples de valores porventura pagos a maior pelo consumidor, apurados após a dedução de eventual saldo devedor, acrescidos de correção monetária pelo INPC a partir de cada desembolso e juros de mora de 1% ao mês desde a citação, devendo o INPC ser deduzido dos juros (art. 406, §1º, do CPC);
d) INDEFIRO o pedido de fixação de indenização por danos morais.
Considerando a sucumbência mínima da autora, condeno o réu ao pagamento das custas processuais e de honorários advocatícios, os quais fixo em 10% sobre o valor da condenação, nos termos do art. 85, §2º, do CPC.
No caso de oposição de embargos de declaração, havendo possibilidade de serem aplicados efeitos infringentes, deverá a parte contrária ser intimada para manifestação no prazo legal.
Interposto recurso de apelação, intime-se a parte recorrida para apresentar contrarrazões, no prazo legal de 15 (quinze) dias, conforme preconiza o artigo 1.010, §1º, do Código de Processo Civil.
Se apresentada apelação adesiva pela parte recorrida, na forma do artigo 997, do Código de Processo Civil, intime-se a parte contrária para contrarrazões no prazo de 15 (quinze) dias, de acordo com o artigo 1.010, §2º, do Código de Processo Civil.
Caso as contrarrazões do recurso principal ou do adesivo ventilem matérias elencadas no artigo 1.009, §1º, do Código de Processo Civil, intime-se a parte recorrente para se manifestar, no prazo de 15 (quinze) dias, conforme o artigo 1.009, §2º, do Código de Processo Civil.
Após, encaminhem-se os autos ao egrégio Tribunal de Justiça de Goiás, com as homenagens de estilo, ressaltando-se que o juízo de admissibilidade do recurso será efetuado direta e integralmente pela Corte, segundo o teor do artigo 932 do Código de Processo Civil.
Após o trânsito em julgado, não havendo mais requerimentos, arquivem-se os autos, com baixa na distribuição.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Cumpra-se.
Alvorada do Norte/GO, data da assinatura eletrônica.
PAULO HENRIQUE SILVA LOPES FEITOSA
JUIZ DE DIREITO RESPONDENTE
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